sábado, 19 de fevereiro de 2011

" O jegue e os livros "

Nem adianta perguntar pelo paradeiro do Manoel Ribeiro Filho por lá. Dificilmente alguém vai saber responder. Já do Barraca e suas proezas não há por ali quem não tenha ouvido falar. Nascido e criado em Auzilândia, lugarejo de quatro mil habitantes no meio do caminho para a Serra de Carajás, agora ele é famoso no lugar.
O apelido, naturalmente, é bem autoexplicativo. E foi conquistado a duras penas. Todo mundo tinha na ponta da língua alguma encrenca em que o moleque já se metera. Ele vivia às voltas com as drogas. E fugia como o diabo da cruz dos conselhos e sermões dos mais velhos.
O certo é que, nem entre os próprios amigos e familiares, não havia quem apostasse muita coisa pro futuro daquele menino rebelde, indisciplinado e com um boletim escolar de fazer dó, com as notas mais baixas da classe.
Só que um dia o Barraca mudou. Da água pro vinho.
Ninguém sabe ao certo como o milagre se deu. Uns dizem que o responsável por tudo foi um jegue, animal quase sagrado na vida do sertão. Outros, que foram os livros.
O caso é que certo dia a professora resolveu fazer um convite ao mais insolente de todos os seus alunos. E convocou Barraca a colaborar no novo projeto da escola. O menino teria que conduzir pelas ruas do povoado, semana sim semana não, um jegue. No lombo do animal, colocariam um jacá colorido, cheinho de livros. Eram livros para serem oferecidos e lidos pelas pessoas que estivessem passando na rua.
E quem é que teria que convencer as pessoas a ler?! Sim, justo ele que nunca fora dado aos livros, cadernos, quadro-negro, essas coisas...

Mas, por que não?!, assoprou, na mesma hora, em seu ouvido, o bichinho da dúvida - que, afinal, todo mundo tem o seu. Aquilo tudo, ele conclui, tinha cheiro de confusão na certa. Ele topou, é claro.
Com o jumento à frente, a festiva procissão dos livros saía, com toda pompa, à cata de possíveis e preguiçosos leitores. Em dado momento, eles espalhavam os livros pelo chão, sobre um lençol. Para conquistar um leitorzinho que fosse, valia tudo. - Quem quiser que pegue o seu! - gritava o camelô de livros emprestados.
Muitos, de fato, apanhavam o seu. E liam até. Sem uma biblioteca, uma livraria ou uma banca de jornal que fosse, esse era o único jeito de conseguir um livro por aquelas bandas.
A ideia logo pegou.
Mas um dia Barraca, solerte motorista da biblio-jegue (um dos tantos apelidos inventados pelo povo), estranhou que alguns daqueles homens e mulheres de mãos calejadas, cansados da labuta da vida, só folheavam. E, às vezes, folheavam de cabeça pra baixo.
Não sabiam ler, ele concluiu. E, pelo visto, não tinham nenhum orgulho disso. Principalmente quando estavam na frente dos netos pequenos.
Barraca - que, até então, batia no peito, orgulhosamente, para dizer que não lia mesmo por pura vagabundice - foi tocado, nessa hora, por um estranho sentimento de compaixão. Resolveu, então, dar uma mãozinha para esses. Pegou um desses livros com muitas figuras, letras grandes e poucas páginas e passou a ler para eles.
Quando se deu conta, já tinha tomado gosto pela coisa. E a vida dele, aos poucos, ia mudando. Daí a se tornar um contador de histórias - figura mítica que tem se multiplicado pelo país afora com espantosa rapidez - foi um pulo.
A primeira transformação é que Barraca passou a ser reconhecido nas ruas. Agora, por uma causa boa. Gostou disso. Quando a meninada o chamava de tio, ele se sentia importante, com sua autoestima lá no topete.
Em pouco tempo, se tornaria professor na alfabetização de jovens e adultos. Logo ele...
Hoje em dia, o Barraca já não existe mais. Deu lugar ao Manoel, cidadão de bem que vive no município de Vista Alegre do Alto, nos grotões do Maranhão. Que descobriu que, se ler para si pode ser uma atitude cidadã, ler para o outro é, sobretudo, um ato de amor.

Autor: Por Galeno Amorim
Contribuição: Hialmar d'Haese

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